segunda-feira, 31 de maio de 2010

Universos de percurso


Depois de horas sem luz - disjuntor que não deu conta das muitas "atividades", chave de contador sob domínio de síndico passeante, horas de espera por alguém desconhecido que não chega, bilhetinho educado na porta alheia, e corpos-em-busca-de-café-tardio (chuva se anuncia), eis que... o major nos convida para - além da chave de contador - um percurso por sua morada.

Um universo se anuncia. Primeiro olhar: objetos antigos. Admirança de primeira vista.

Segundo olhar: coleções. O tempo e os sons, o major da melancolia tinha paredes com os mais variados relógios de passagem, enormes, contando os segundos, anunciando aquilo que não se pode controlar. E tinha também um delicado parapeito de janela (adornos de vidros coloridos que dão para o jardim) coberto de sinos dos mais variados tamanhos, materiais e timbres, anunciando a própria anunciação... (Fiz questão de ouvi-los todos ou quase).

Perguntou meu nome mais de uma vez, dizendo que eu tinha cara de mãe. Com um presente-vasinho na mão, depois de mostrar seu nascedouro de plantas, se espanta ao me ouvir perguntar "quais cuidados devo ter com essa plantinha, seu Inácio?". Com um pouco de pressa no olhar e apoiado em sua bengala, embora seus movimentos fossem dificultados por toda a experiência carregada em um corpo de 90 anos, disse, simplesmente: "Não tem nenhum segredo... Cuide-a como tu cuidas a ti mesma".

Ao propor a partida, pediu-me que escolhesse uma rosa, mas eu que a deveria pegar. O dono da rosa é que precisa escolhê-la com suas mãos.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

No canto dos olhos



Conforto alucinante, tranquilidade na clareira do caos
O ponteiro, ele rodou mais rápido no mesmo relógio de ontem
O que as horas guardam nos espaços do contra-tempo?

E o desejo, o desejo
O desejo meigo

O desejo é um tempo parado
É quando se trocam as datas dos bichos e das flores
É quando aumenta a rachadura da velha parede
É quando se vira a folha, a folha da história
É quando se pinta um fio branco na cabeleira preta
É quando se endurece o rastro de sorriso
No canto dos olhos
Eu sei que a viagem é longa
A voz vai e vem
Você tá aí?
Você tá aí?
Ei, você está aí?
Vontade de abraçar o infinito... *


Mira os olhos azuis que te acompanham, e que te dizem a cada minuto da vida “- coragem”.

Os olhos que outrora te ajudaram a chorar mesmo de alegria, vida cadência de lágrimas que te acompanham – a se pensar como uma pessoa das águas, que, como tal, não foge de seu destino. Destino meandro, nada determinado, apenas algumas pistas neste solo tão árido, por vezes – a vida.

Mas tem horas que brandura acalma, a paz ou coisa parecida, e no movimento de lentidão o coração pequeno bate descompassado quando pisca um olho, dizem que a isto chamam paixão, não sei, mas a cor é de um vermelho que quase cega de tanto que vibra, e que com o tempo toma todas as cores por emprestado.

Tem também daqueles vermelhoscoloridos que a gente alimenta todos os dias sem sossego, mesmo que tomado de uma atitude sem desespero… Essas coisas bonitas de se apaixonar pela mesma pessoa diariamente, em cada surpresa da vida e do desconhecimento do outro.

Mira estes olhos azuis, doces que nem nuvem de algodão, dizendo calmamente “- abre o peito”.

Eis o desejo, em pena, pele. Suspende o desejo no tempo do agora. E agora, e agora, e agora. Para que a vida se alimente de infinito, em cada canto dos olhos azuis destes livramentos… descortinando e tecendo a trama...


*Da música “meu mundo”, na obra “certa manhã acordei de sonos intranquilos”, do futuro amigo Otto. Trecho chamado, entoado, declamado e soprado por Lirinha, um dos ex cordéis que buscam permanecer encantados.



sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Nesta data querida.


Eu queria neste dia (inicinho de dia, as cores ainda não se anunciaram) te escrever sobre a vida. Mas eu sinto como se não tivesse ainda domínio para fazê-lo. Nem nas letras, nem na expressão, muito menos na experiência. Só o que posso te falar é que a vida tem se apresentado imperativamente pra mim. "Viva", diz ela num susurro doce e sereno, quase que numa confluência de sentido, que me arrebata, me corta a pele, vem com o vento e me atravessa, meu corpo se transforma em puro-poro, e eu me sinto impelida a simplesmente... obedecer. Abri despretensiosamente Manoelzinho que me falava da namorada que outrora esteve em sua vida, uma tal que via errado: "o que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era o rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste. Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com as suas contradições. Acho que essa frequência nos desencontros ajudava o seu ver oblíquo". Isso mesmo, seu olhar, um olhar que tangencia as coisas. Que percorre o entorno. Que nunca se detém, porque sabe que no mundo há ainda muito no que se perder - ela de algum modo intuía que tudo começava pelo olho. Eu tenho começado com a pele. Outro dia olhei com a pele. Senti várias texturas e temperaturas. Vivi até teias e mofos, minha mão saiu preta mas incrivelmente viva, contraste total diante do mundo higienizado que temos sido submetidos nos últimos meses. Isso tem me dado também o que pensar com a pele... vivenciando essa beira, do rio, da garça, de todas as coisas que passam, inclusive de se perceber incrivelmente de passagem. Então neste dia tudo o que eu queria era te sentir com a pele, poder fazer o traçado do teu rosto com suavidade e te dizer obrigada, obrigada por existires, assim, tão viva em mim. Só está faltando a minha letra e um carimbo, mas te mando em anexo uma caixinha onde depositei todo o meu amor por ti.

domingo, 7 de junho de 2009

Segunda infância

...




Retornar, enquanto tornar a ser, via rememoração: sempre uma relação de ativamento das reminiscências mais desordenadamente encontráveis. Uma relação não passiva, no sentido de que imprime uma recriprocidade entre o passado que se desvela através de uma leitura empreendida no - e através do - presente, e o presente que se descortina também como possibilidade através da narração das lembranças mais longínquas.

Realmente, o retorno não é simplesmente uma volta, até porque os ordenamentos são os mais dispersos possíveis, difícil, então, sustentar uma linearidade pura, plena e fechada em si. A memória vem como um derramamento, e, neste caso, um grande derramamento de afetos de vida, sensações que me fazem imergir naquela meninez que percebo "aquém e além do tempo", como em uma fronteira entre o determinado e o indeterminável, e que essa criança que lembro e julgo que seja eu, essa menina que brinca no quintal, na frente de casa, e na rua, seja de boneca, bolinhos de barro, bolinha de gude, esconde-esconde, até mesmo procurar trevo de quatro folhas, na esperança inocente do futuro, essa menina ainda está presente em mim. Lembrar o que se deseja, e desejar o que se lembra...

E foi assim que lembrei dos meus idos cinco anos de idade, numa tarde em que brincava com panelinhas e pratinhos na rua - esta ainda de areia - e ouvia o murmurinho das pessoas que passavam e diziam, em um mistura de curiosidade e preocupação - porque em lugares assim a vida do outro se torna um tanto coletivizável, e assim todo mundo se sente um pouco responsável ou no direito de assim se sentir -, que o Seu Fontoura, praticamente nosso vizinho, não saía de casa fazia cinco dias.

Não entendia como poderiam ter conhecimento das coisas mínimas da vida do homem, este que entre nós, crianças, era como um enigma que tentávamos desvendar, entrando escondidos no seu quintal, e o observando pelas frestas das janelas que costumavam ficar fechadas. Quando ele se apercebia, saía correndo a nos xingar por tamanha invasão, entretanto ele nos percebia justamente porque nos denunciávamos, começávamos a rir por mais uma vez driblar a cerca, as frestas da madeira, e todas as suas estratégias pra se ver alheio do mundo exterior.

O dizíamos "bruxo", mas não porque entendíamos o que queríamos dizer com isso, e sim porque era uma pessoa que andava sempre muito recolhida, quieta e triste na sua aparente cisudez, vestindo sempre um traje escuro, porque na verdade portava o luto de não ter conseguido superar o falecimento de sua amada. Isto era então para mim uma espécie de descompasso do tempo, porque eu sequer a havia conhecido, ou não tivera tal memória, o que hoje me faz concluir que seu ostracismo voluntário era algo de cinco anos, pelo menos. Sua imagem, a imagem que construíamos dele, libertava o desconhecido em nosso imaginário.

No dia seguinte saí e fui novamente até à rua para brincar. Em frente à casa de Seu Fontoura haviam muitas pessoas, carros estacionados, ambulância, IML. A cena que vi, ao olhar pra essa multidão de acontecimentos, foi dois homens levando silenciosamente um caixão até um carro preto, e sendo acompanhados com os olhares também silenciosos de curiosos e preocupados. Não teve quem chorasse por ele. Era um solitário. E, para mim, o tempo era suspenso pela primeira vez.
...

Nos últimos anos, a linha do ônibus começou a passar por esta rua, e com os ônibus, veio o tráfego, e com ele primeiramente o saibro, e, hoje, soterrando muitas memórias, o asfalto. As crianças já não podem brincar naquele cantinho embaixo da árvore, pois ali também não repousa mais a árvore. A casa da minha infância não é mais amarela, agora assume a cor salmão, e sobre o Seu Fontoura ninguém nunca mais falou. Não sobreviveu sequer como lenda da região.

Mas isso não implica olhar de modo cinza ao que se apresenta hoje como imagem da Vila da Quinta, a todas estas coisas que uma ilusão do progresso foi tomando conta: mesmo neste lugar outro - ou muitos outros, na medida em que cada um tem um modo diferente de senti-lo - há ainda muitas possibilidades memoriais, mesmo naquilo que a passagem do tempo destituiu de materialidade.

Realmente o lugar se tornou outra coisa, e voltar em abril de 2009 a ele, revirando cada paisagem em que me fazia menina ou adolescente, enquanto as revivia, uma a uma, na noite em que chegara, foi o que eu poderia dizer de um "encontro comigo mesma"... Em toda multiplicidade que implica este encontro, muito mais do que um retorno. Um reencontrar-se sendo muitas.

O arroio das cabeças e a lembrança da sombra embaixo da grande figueira, enquanto observava as pessoas a tomarem seus banhos nos vários dezembros;
A lenda do fantasma da noiva que se escondia na mata que fica atrás do arroio;
A capelinha que fica à beira da estrada, de 2mx2m, azul, mantida e cuidada pela comunidade, onde minha mãe me levava, quando ía acender velas e orar;
A venda do Seu João, e o que dela restou, onde eu ía comprar cigarros para meu pai tendo a caminhada em troca de um sorvetinho com maria-mole e bixiguinha - às quais confesso nunca ter conseguido encher;
O canal da Corsan, a 2km da Quinta, na estrada em direção à Santa Vitória do Palmar, lugar onde gostava de me sentar para ouvir o barulho da água, depois de andar de bicicleta (infelizmente não temos cachoeiras na Quinta);
O barulho do trem.
...

Em uma noite de inverno do ano de 2006, após passar a tarde fotografando com a primeira pessoa que me fez voltar a olhar para aquele lugar da minha infância, sentia - então mediada pela produção de imagens - o arroio, a estação ferroviária, o entorno da praça, as minhas afilhadas brincando. Náthaly iria completar três anos e pouco falava, sempre muito observadora. Iasmyn, então com cinco anos, uma contadora de estórias.

No retorno para casa foi que Iasmyn interrompeu a si própria em uma de suas estórias, em pleno ato narrativo, dizendo, efusiva e encantada: "-Olha, dinda, um arco-íris", enquanto apontava para uma casa.

E é nesta imagem capturada há alguns anos que me vejo repleta de muitas temporalidades. E em muitas delas, encontro-me na meninice de Iasmyn.

E através da imagem desta casa, da casa de Seu Fontoura, que já não é mais a mesma, por certo - foi-se a cerca, foi-se a madeira, foram-se as janelas... -, que reencontro com esta memória longínqua e esquecida.

E que, relembrando o até então esquecido Seu Fontoura, é que percebo que para todo fim deve haver um recomeço.

Seu Fontoura mora atrás do arco-íris, e, no abraço das árvores, sua casa se encontra povoada de sonhos.

À todos os recomeços e aos novos encontros.


...

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Début

"Um dia eu senti um desejo profundo de me aventurar nesse mundo pra ver onde o mundo vai dar", canta Mônica Salmaso em "Nas voltas que a vida dá". Dentre tantos movimentos nos quais me senti imersa, foi me perdendo na imensidão de possibilidades da experiência que, somente depois de muitas curvas - e até alguns 'retões' rumo ao Chuí -, fui tendo algumas pistas para perceber que, de verdade, "quanto mais a gente se solta, mais fica no mesmo lugar". Deleuze que me perdoe: estou enamorada por Benjamin.

Percebendo pela pele (sentindo, vivenciando, ou, num outro grau de intensidade, experenciando) o que os filósofos queriam dizer com a palava movimento, foi no ato de "olhar" para o vento que todas as modificações se despiam para mim em um horizonte de mar que muitos conhecem como "Praia do Cassino". Era a passagem de 2008, e unindo as dispersões que um ano longe de casa e de tudo que se tem como 'casa' (afetos, pessoas, afetos, ruas, afetos, pontos de referência, afetos, deslizes, afetos), eu me sentia inserida nas mudanças do mundo, mudando, por fim, e não tendo o menor receio, apenas um sabor nada amargo - a vertigem que toda aventura nos proporciona.

Em uma das muitas noites que tentei "entender" minha condição, até o momento em que percebi que basicamente eu deveria era me jogar no seu devir, cheguei em terras em que falava até mesmo da experiência antropológica do amor, e um amigo-irmão, que insisto em dizer que é meu duplo, via meu rosto se fragmentar em muitos na luz do dia que chegava sem pedir licença, logo ele que me conhece há várias épocas, e que sabe das muitas que fui, me viu ali, em cada pedaço, numa manhã nascente em que pensávamos que o tempo havia parado (entre confecções de marca-páginas coloridos com sobrinhas sorridentes e torradas sem presunto, mas com batata palha, acreditem!).

Se para assumir os limites da afirmação basta estar vivo e agarrar o bandoneón (já diria o saudoso poeta uruguaio Mário Benedetti), é na experiência que nos leva tanto ao choro inconsolável quanto ao riso desmedido, a toda intensidade, enfim, que um delicioso tango argentino se apresentou pra mim.

E foi n'aquela noite que narrei a necessidade que todos temos de sair da terra-mãe para poder então cantá-la, sem medo, sem pressa, mas com uma urgência tal de materialização; e esta, no meu caso, é a de quem precisa se materializar em palavra ou imagem, ou em palavrimagem, coisa que eu poderia dizer sem nenhum problema, se eu tivesse nascido no Mato Grosso e me chamasse Manoel de Barros.

Narrar a cidade. Dar fluxo às memórias, aos tempos "idos".

Se um dia juntei o que me dava alguma referência em malas e fui acumulando quinquilharias pelo caminho, agora me solto, volto, e com os "meus troços num saco de pano" inicio narrando aquilo que fica no meio: alguns a conhecem como Vila da Quinta, quase uma 'encruzilhada' entre Rio Grande, Pelotas e Santa Vitória do Palmar, Rio Grande do Sul, extremo sul do Brasil.

Do modo como a conheço, não fica exatamente no meio, encontra-se em algum ponto suspenso e intercambiante (segundo o movimento que é feito por aquele que a sente), mas fica sempre à esquerda, num lugar que alguns - ou muitos - poetas chamaram de coração.