domingo, 7 de junho de 2009

Segunda infância

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Retornar, enquanto tornar a ser, via rememoração: sempre uma relação de ativamento das reminiscências mais desordenadamente encontráveis. Uma relação não passiva, no sentido de que imprime uma recriprocidade entre o passado que se desvela através de uma leitura empreendida no - e através do - presente, e o presente que se descortina também como possibilidade através da narração das lembranças mais longínquas.

Realmente, o retorno não é simplesmente uma volta, até porque os ordenamentos são os mais dispersos possíveis, difícil, então, sustentar uma linearidade pura, plena e fechada em si. A memória vem como um derramamento, e, neste caso, um grande derramamento de afetos de vida, sensações que me fazem imergir naquela meninez que percebo "aquém e além do tempo", como em uma fronteira entre o determinado e o indeterminável, e que essa criança que lembro e julgo que seja eu, essa menina que brinca no quintal, na frente de casa, e na rua, seja de boneca, bolinhos de barro, bolinha de gude, esconde-esconde, até mesmo procurar trevo de quatro folhas, na esperança inocente do futuro, essa menina ainda está presente em mim. Lembrar o que se deseja, e desejar o que se lembra...

E foi assim que lembrei dos meus idos cinco anos de idade, numa tarde em que brincava com panelinhas e pratinhos na rua - esta ainda de areia - e ouvia o murmurinho das pessoas que passavam e diziam, em um mistura de curiosidade e preocupação - porque em lugares assim a vida do outro se torna um tanto coletivizável, e assim todo mundo se sente um pouco responsável ou no direito de assim se sentir -, que o Seu Fontoura, praticamente nosso vizinho, não saía de casa fazia cinco dias.

Não entendia como poderiam ter conhecimento das coisas mínimas da vida do homem, este que entre nós, crianças, era como um enigma que tentávamos desvendar, entrando escondidos no seu quintal, e o observando pelas frestas das janelas que costumavam ficar fechadas. Quando ele se apercebia, saía correndo a nos xingar por tamanha invasão, entretanto ele nos percebia justamente porque nos denunciávamos, começávamos a rir por mais uma vez driblar a cerca, as frestas da madeira, e todas as suas estratégias pra se ver alheio do mundo exterior.

O dizíamos "bruxo", mas não porque entendíamos o que queríamos dizer com isso, e sim porque era uma pessoa que andava sempre muito recolhida, quieta e triste na sua aparente cisudez, vestindo sempre um traje escuro, porque na verdade portava o luto de não ter conseguido superar o falecimento de sua amada. Isto era então para mim uma espécie de descompasso do tempo, porque eu sequer a havia conhecido, ou não tivera tal memória, o que hoje me faz concluir que seu ostracismo voluntário era algo de cinco anos, pelo menos. Sua imagem, a imagem que construíamos dele, libertava o desconhecido em nosso imaginário.

No dia seguinte saí e fui novamente até à rua para brincar. Em frente à casa de Seu Fontoura haviam muitas pessoas, carros estacionados, ambulância, IML. A cena que vi, ao olhar pra essa multidão de acontecimentos, foi dois homens levando silenciosamente um caixão até um carro preto, e sendo acompanhados com os olhares também silenciosos de curiosos e preocupados. Não teve quem chorasse por ele. Era um solitário. E, para mim, o tempo era suspenso pela primeira vez.
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Nos últimos anos, a linha do ônibus começou a passar por esta rua, e com os ônibus, veio o tráfego, e com ele primeiramente o saibro, e, hoje, soterrando muitas memórias, o asfalto. As crianças já não podem brincar naquele cantinho embaixo da árvore, pois ali também não repousa mais a árvore. A casa da minha infância não é mais amarela, agora assume a cor salmão, e sobre o Seu Fontoura ninguém nunca mais falou. Não sobreviveu sequer como lenda da região.

Mas isso não implica olhar de modo cinza ao que se apresenta hoje como imagem da Vila da Quinta, a todas estas coisas que uma ilusão do progresso foi tomando conta: mesmo neste lugar outro - ou muitos outros, na medida em que cada um tem um modo diferente de senti-lo - há ainda muitas possibilidades memoriais, mesmo naquilo que a passagem do tempo destituiu de materialidade.

Realmente o lugar se tornou outra coisa, e voltar em abril de 2009 a ele, revirando cada paisagem em que me fazia menina ou adolescente, enquanto as revivia, uma a uma, na noite em que chegara, foi o que eu poderia dizer de um "encontro comigo mesma"... Em toda multiplicidade que implica este encontro, muito mais do que um retorno. Um reencontrar-se sendo muitas.

O arroio das cabeças e a lembrança da sombra embaixo da grande figueira, enquanto observava as pessoas a tomarem seus banhos nos vários dezembros;
A lenda do fantasma da noiva que se escondia na mata que fica atrás do arroio;
A capelinha que fica à beira da estrada, de 2mx2m, azul, mantida e cuidada pela comunidade, onde minha mãe me levava, quando ía acender velas e orar;
A venda do Seu João, e o que dela restou, onde eu ía comprar cigarros para meu pai tendo a caminhada em troca de um sorvetinho com maria-mole e bixiguinha - às quais confesso nunca ter conseguido encher;
O canal da Corsan, a 2km da Quinta, na estrada em direção à Santa Vitória do Palmar, lugar onde gostava de me sentar para ouvir o barulho da água, depois de andar de bicicleta (infelizmente não temos cachoeiras na Quinta);
O barulho do trem.
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Em uma noite de inverno do ano de 2006, após passar a tarde fotografando com a primeira pessoa que me fez voltar a olhar para aquele lugar da minha infância, sentia - então mediada pela produção de imagens - o arroio, a estação ferroviária, o entorno da praça, as minhas afilhadas brincando. Náthaly iria completar três anos e pouco falava, sempre muito observadora. Iasmyn, então com cinco anos, uma contadora de estórias.

No retorno para casa foi que Iasmyn interrompeu a si própria em uma de suas estórias, em pleno ato narrativo, dizendo, efusiva e encantada: "-Olha, dinda, um arco-íris", enquanto apontava para uma casa.

E é nesta imagem capturada há alguns anos que me vejo repleta de muitas temporalidades. E em muitas delas, encontro-me na meninice de Iasmyn.

E através da imagem desta casa, da casa de Seu Fontoura, que já não é mais a mesma, por certo - foi-se a cerca, foi-se a madeira, foram-se as janelas... -, que reencontro com esta memória longínqua e esquecida.

E que, relembrando o até então esquecido Seu Fontoura, é que percebo que para todo fim deve haver um recomeço.

Seu Fontoura mora atrás do arco-íris, e, no abraço das árvores, sua casa se encontra povoada de sonhos.

À todos os recomeços e aos novos encontros.


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